Seis Medidas que poderão, se implementadas, diminuir a Letalidade Policial no Estado de São Paulo em mais de 50%.

Por: Benedito Mariano. Mestre em Ciências Sociais pela PUC-SP; Ex Ouvidor da Polícia de São Paulo; Assessor Parlamentar; Prof. da Faculdade de Direito de Santa Maria- FADISMA RS; Membro Associado do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
A letalidade policial no estado de São Paulo nos quatro primeiros meses de 2020 foi 31% maior quando comparada com o mesmo período do ano passado. Somam-se a este dado os vários casos de agressões à cidadãos pobres das periferias que não apresentavam resistência e nem perigo aos agentes do estado.
Acuado pela repercussão destes fatos, o governador mudou a narrativa, anunciando que irá “Retreinar” todo efetivo da Polícia Militar: de Coronéis a Praças. Vale lembrar que na sua campanha eleitoral e no seu primeiro ano de governo, o governador Doria adotou o discurso beligerante do atual presidente da República, anunciando inclusive a criação de novos Batalhões de Ações Especiais (BAEPs) na grande São Paulo e no interior com “padrão Rota”. Os novos Batalhões criados levaram a divisão dos efetivos das Forças Táticas, trazendo mais problemas de gerenciamento operacional do que soluções, além de contribuir diretamente com o aumento da letalidade policial.
A iniciativa de condecorar policiais militares da Rota por uma ocorrência que resultou em 11 mortes na cidade de Guararema, onde haviam indícios, com base em laudos técnicos, que ao menos quatro vítimas morreram sem resistência, simbolicamente contribuiu para incentivar ações letais por parte desta unidade em 2019. Nenhuma ocorrência com resultado morte é uma boa ocorrência, mesmo considerando que as vítimas eram de uma organização criminosa, razão pela qual não havia o que comemorar.
Dados oficiais apontam que os números de letalidade do 1º Batalhão de Choque – a ROTA, aumentou 98% em 2019 comparando com os dados de 2018.
Portanto Sr. Governador, os Oficiais da Policia Militar e os Praças não precisam de “Retreinamento” de algumas semanas. Precisam sim de uma ampla política de segurança pública que tenha como objetivo enfrentar a cultura oligárquica e racista presente no estado brasileiro e que permeia as instituições policiais. Nesta perspectiva, os policiais militares que cometem excessos são vítimas da própria violência que produzem e, paradoxalmente, alimentam e reproduzem a cultura oligárquica, racista e repressiva patrocinada pelo estado historicamente. Os governos da transição democrática, ao invés de enfrentar esse legado perverso e criar uma polícia inspirada nos valores da democracia e da cidadania, reforçam essa cultura quando tomam iniciativas demagógicas e reativas que perpetuam um modelo de polícia pautado na seletividade, no qual as vítimas da violência são, sistematicamente, pobres e negros.
Elenco aqui seis medidas, que se implementadas, tem potencial de diminuir em mais de 50% os excessos policiais e a letalidade, a curto e médio prazo. Cinco delas já foram apresentadas ao governo de São Paulo em 2018 e 2019 pela Ouvidoria da Polícia e uma delas foi colocada em prática na gestão do então governador Mario Covas, alcançando efetiva diminuição das mortes em decorrência de intervenção policial. São elas:
1- Centralizar na Corregedoria da PM todos os Inquéritos Policiais Militares (IPMs) relacionados a mortes em decorrência de intervenção policial (hoje o órgão só apura em média 3% destes casos e 97% ficam a cargo dos Batalhões de Área, dos quais os policiais investigados tem origem) e os IPMs relativos a agressões e abuso de autoridade;
2- Criar a Disciplina sobre “Estereótipo de Suspeito e Discriminação Racial e Social” nas Escolas e na Academia da Policia Militar. Esta disciplina deverá ser ministrada por pessoas de fora da instituição que trabalhem com o tema do racismo estrutural. Além da criação da disciplina é fundamental que ela seja objeto de discussão nas preleções diárias nos Batalhões e Cias da PM. A violência policial não é aleatória, atinge sistematicamente pobres e destes, 65 a 70% são jovens negros;
3- Tirar dos Boletins de Ocorrências (BOs), a natureza “excludente de ilicitude” das ocorrências de morte em decorrência de intervenção policial. Para se aferir se houve ou não excludente de ilicitude é necessário esperar pelo final do processo investigativo e não a priori no registro do caso;
4- Criar um Protocolo Operacional Padrão (POP) que indique que ninguém poderá ser morto em ocorrências de intervenção policial por “fundada suspeita”, que muitas vezes é medida pela cor da pele e pela condição social da vítima;
5 – Implementar o Policiamento Ostensivo Preventivo ao invés do Policiamento Ostensivo que busca o Flagrante Delito como existe hoje. A Policia eficiente é aquela que evita o crime e não a que “caça criminosos”. A busca pelo flagrante embrutece o policial.
6 – Implementar o Programa de Afastamento do Serviço Operacional, por no mínimo três meses, de todos os policiais militares envolvidos em ocorrências de mortes em decorrência de intervenção policial, independente dos procedimentos investigativos internos. No período de afastamento, o policial deverá passar por acompanhamento psicológico. A medida não tem caráter punitivo e não mudaria a rotina do policial. Ele ficaria na mesma escala de serviço e no mesmo local de trabalho no setor administrativo.
Em pesquisa realizada pela Ouvidoria da Polícia em 2018 sobre o “Uso da Força por Policiais de São Paulo e Vitimização Policial”, que analisou 80% das ocorrências de letalidade policial a partir de laudos técnicos produzidos pela própria polícia, concluiu-se que havia fortes indícios de excessos em 74% das ocorrências. Estas seis medidas elencadas, se implementadas, poderão ter impacto direto na diminuição de mais de 50% da letalidade policial, porque visam diminuir os excessos nas ocorrências de intervenção policial.
Ao invés de “retreinar” policiais por semanas, que será inócuo, o governo do estado de São Paulo poderia efetivamente implementar as medidas mencionadas e, ao mesmo tempo, criar urgentemente políticas de valorização profissional, tais como:
1- Piso Salarial Estadual para as três policias para elevar os salários dos policiais, principalmente das bases das policias, que contribuirá diretamente na diminuição da vitimização policial nos chamados “bicos”, que muitos policiais fazem para complemento salarial;
2- Ampliar o Programa de Saúde Mental existente na Polícia Militar, que hoje atende apenas cerca de 35% do efetivo. Iniciar o Programa de Saúde Mental na Polícia Civil e na Polícia Técnico Científica, que contam com apenas dois pequenos núcleos de acompanhamento psicológico com menos de 10 profissionais para atender mais de 28 mil policiais. Pesquisa inédita feita pela Ouvidoria da Polícia em 2019 sobre Suicídio Policial,realizada com apoio das direções das policias, concluiu que o suicídio policial é, em média, quatro vezes maior que na sociedade paulista e brasileira;
3 – Criar carreira própria para as Corregedorias das Policias e vinculá-las ao gabinete do Secretário de Segurança Pública, garantindo inamovibilidade e formação especifica aos policiais destes órgãos de controle interno. Os órgãos corregedores tem que ser valorizados e fortalecidos;
4 – Fortalecer a Polícia Civil e a Polícia Técnico Científica, que foram sucateadas por anos pelos governos paulistas, implementar melhorias nas unidades, com nova estrutura e novos equipamentos, acompanhados de novos concursos públicos para diminuir o déficit de pessoal nestas instituições policiais;
Com exceção do piso salarial estadual para as três policias, que necessita de autorização do Parlamento paulista, todos as seis medidas que poderão diminuir a letalidade policial e aquelas relacionadas a valorização profissional dependem, exclusivamente, de vontade e decisão política do governador do Estado.
Portanto, não bastam anúncios genéricos e narrativa comum de que o governo não compactua com os desvios de conduta de policiais. É preciso criar mecanismos capazes de inibir e coibir a letalidade policial e outras ações que caracterizam excessos policiais e, ao mesmo tempo, investir na valorização dos policiais, algo totalmente diferente da criação de Unidades com foco de atuação mais repressiva do que preventiva, como é a lógica dos recém-criados BAEPs.
As ações policiais de enfrentamento ao crime organizado envolvendo as duas policias estaduais com resultado morte, segundo pesquisa realizada pela Ouvidoria da Polícia em 2018, representaram em média 1% do total das ocorrências de mortes em decorrência de intervenção policial em 2017. A melhor forma de enfrentar a criminalidade organizada é a inteligência policial seguida de repressão qualificada.
O estado democrático de direito também deve ser medido pelo perfil das suas polícias.
Texto originalmente publicado em: https://politica.estadao.com.br/blogs/gestao-politica-e-sociedade/seis-medidas-que-poderao-se-implementadas-diminuir-a-letalidade-policial-no-estado-de-sao-paulo-em-mais-de-50/